(Ontem ela completaria 100 anos)
Algumas lembranças moram em mim com cheiro de comida feita em casa, cor de fim de tarde e aquele tipo de sorriso que aparece sem fazer alarde. Nunca fui de sorrir fácil. O riso, para mim, vinha quando podia – quase sempre depois de atravessar alguma perda ou silêncio. E talvez tenha sido a infância que me ensinou isso cedo demais.
Minha mãe sempre dizia que não viveria o bastante para me ver crescer. Que era velha demais para criar outro filho. Que minhas irmãs é que cuidariam de mim. A vida, com sua ironia calma, fez o contrário: deixou que ela vivesse até os 96 anos. Pequena, cheia de rugas e sabedoria, Dona Geni esperou com paciência o tempo mostrar que suas palavras tinham peso. E sentido.
Ela falava pouco, mas o que dizia ficava. Cuidou de filhos, netos, bisnetos – e de muitos mundos. Eu, ainda inseguro e meio perdido, levei tempo para entender que palavra de mãe é coisa séria. É tipo mapa que a gente não valoriza, até se ver perdido.
Depois de adulto, morando longe e criando meu próprio filho, continuava ouvindo seus conselhos. Um deles era que eu precisava de uma mulher que me cuidasse. Pra ela, nascida no começo do século passado, isso significava alguém que lavasse, passasse, cozinhasse. Eu torcia a boca, achando aquilo antigo demais. No fim, encontrei alguém que caminha comigo. Dividimos tudo. Nos cuidamos um ao outro. E agora vejo que, no fundo, ela tinha razão – do jeito dela.
Outra coisa que sempre repetia: “pedra que muito rola não cria limo”. Ou seja, eu precisava de um lugar para assentar a vida. Hoje, esse lugar chegou. Estamos indo pra uma casa com pátio, árvores, um riachinho e terra pra plantar. Um canto pra chamar de nosso. Geni sabia das coisas.
A última vez que falei com ela foi num domingo, como sempre. Atendeu com aquela frase que já virara costume: “Venha me ver, eu não saio mais.” Não deu tempo. A pandemia tornou tudo mais difícil. Mas no seu último aniversário, conseguimos enviar um presente especial: pantufas e meias coloridas. Ela recebeu no dia em que completou 96 anos. No dia seguinte, o vento frio assobiava lá fora, e ela estava com os pés quentinhos.
Depois que ela partiu, me contaram que foi sepultada com as pantufas nos pés. Achei bonito. Partiu como se estivesse em casa, confortável. Como quem vai visitar um novo lugar, mas sem pressa, sem frio, sem medo.
Gosto de pensar que ela pisou na Lua com aqueles pés cobertos de carinho. E que a Lua, desde então, brilha um pouco mais. Porque quando uma mãe parte, deixa suas palavras com a gente – e elas aquecem tanto quanto as pantufas.
Dona Geni foi embora com um sorriso discreto e os pés bem aquecidos. Como quem sabe que deixou tudo no lugar.
Dona Geni e suas pantufinhas de pisar a lua. Por aqui seguimos honrando sua existência. Sou grata sempre pelo companheiro lindo que tenho, um homem que aprendeu muito sobre a vida com sua mãe.