O ipê não floresce mais
Noutro dia soube que uma editora havia morrido. Não uma daquelas grandes, com vitrines em aeroportos e slogans envernizados, mas uma editora que sabia ouvir o silêncio entre as palavras. Tinha nome bonito, daqueles que parecem título de conto, e uma curadoria feita com mãos de quem já chorou lendo o original de um desconhecido.
Quando me contaram, calei. O luto, por vezes, não é uma tragédia repentina, mas um fio que se desfaz devagar, como um suéter antigo puxado por um prego. Fiquei dias envolvido nesse silêncio. Não um silêncio nobre, desses de quem ora; era um silêncio atônito, de quem não compreende como morre algo que nasceu de tanta dedicação.
Encontrei o editor, semanas depois, numa manhã mansa, de luz morna, dessas em que a cidade parece se lembrar que é possível parar de correr. Disse a ele o quanto sentia. Ele olhou para o chão — ou talvez para dentro — e respondeu com uma sinceridade que me desmontou:
— Eu ainda sinto.
Ficamos um tempo quietos, como se ao redor de um caixão invisível. A editora não era só uma empresa. Era um corpo coletivo, uma reunião de afetos. E de repente ela não estava mais ali. Como se o ipê da esquina, que durante vinte anos floriu com pontualidade emocionante, amanhecesse seco, os galhos nus, e ninguém soubesse explicar por quê.
Como morre uma editora que cuidava dos textos como se fossem filhos alheios deixados em suas mãos? Como, mesmo com tanto trabalho, tanto sonho compartilhado, ela simplesmente... some? O que arrasta a palavra para o chão antes que ela aprenda a voar?
E talvez o mais inquietante: por que ninguém chora essa morte?
O silêncio dos autores me atordoa. Não o silêncio daqueles que não souberam, mas o dos que souberam e passaram adiante como se fosse natural. Como se esse desaparecimento fosse parte do ciclo. Mas não é. Uma editora que floresce por décadas e some como se nunca tivesse existido... isso não é natural. É violento. É como acordar e descobrir que esqueceram de plantar a primavera.
Lembro de todas as vezes em que estivemos juntos — eu, o editor, os autores, as ideias. Feiras empoeiradas, debates improvisados, cafés carregados, mesas de bar com literatura escorrendo entre os copos. Posso elencar esses momentos como quem remonta uma linha do tempo esburacada. Mas não me lembro de uma só vez em que se falou, abertamente, em desistir.
Perguntei a ele:
— O que fez você parar?
A resposta veio sem enfeite, sem metáfora, rasteira como a tristeza quando já está cansada:
— São tantas coisas que se arrastaram… que nem sei.
E ali, nesse “nem sei”, entendi tudo. Porque há dores que a gente não nomeia. Dores que se acumulam como caixas que vamos empilhando, dizendo “depois resolvo”. Até que um dia, não há mais espaço para respirar.
E o livro que não vai mais sair do prelo dói.
A palavra que não vai ganhar o mundo dói.
O original que chega, e que ninguém mais pode acolher, dói.
O leitor que não encontrará aquela história dói.
É dor. Mas é também um luto por algo que, mesmo morto, ainda pulsa em quem ficou.